- Sector Real/Primário Da Economia
Angola tem dado passos em direcção ao modelo de intervenção descentralizada, que se consubstancia na intervenção repartida entre o Estado e o Sector Privado. Nesse modelo, o Estado deve actuar como legislador, regulador, fiscalizador e orientador (intervenção passiva), intervindo, apenas quando necessário, como produtor de bens e/ou serviços (intervenção activa).
A esse respeito, o Decreto Presidencial n.º 78/23, de 28 de Março[1], que prorrogou o período de execução do programa nacional de Privatizações (PROPRIV), aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 250/19, de 5 de Agosto, para o período de 2023-2026, vem demonstrar cristalinamente o posicionamento do Estado quanto ao modelo que pretende adoptar.
Avançando, sendo a economia a gestão racional de recursos existentes, que posteriormente se transformam em bens e serviços a serem disponibilizados para a população em geral, pode ser estratificada em 3 (três) principais sectores de actividade ou sectores económicos: Real/ Primário, Secundário e Terciário.
O sector Primário, que é para aqui chamado, compreende o ramo de actividade ligado à exploração de um dos factores de produção, no caso, a terra, enquanto fonte de matéria- prima.
A agricultura, pecuária, pesca e extracção mineira e marinha (sal marinho), compõem o mosaico das principais actividades do sector Primário[2].
Com o crescimento demográfico que se tem registado ( o número de habitantes de Angola cresce num percentual 3.5 por ano, sendo que actualmente ascende os 30 milhões), há necessidade de se recorrer à técnicas e tecnologias actualizadas o suficiente para fazer face à demanda, na perspectiva do suprimento das necessidades da população.
No que diz respeiro à agricultura, pecuária e pesca, se é verdade que Angola já teve condições de auto-sustentação, a verdade é que a guerra fez retroceder essa tendência, obrigando a população a recomeçar o caminho já percorrido.
Desde o fim da guerra, em 2002, registou- se um aumento de colheitas, no entanto, ainda muito longe do que seria necessário para satisfação do mercado interno e, eventualmente, para exportação.
Por um lado, certas características do País facilitam o processo de exploração e são um mecanismo de atracção para quem queira investir nessa área (vastidão de território facilmente adaptado ao cultivo, variedade de tipos de terreno e climas, país rico em água, contando com uma linha costeira de mais de 1.650 Km2 e grande diversidade de peixe, graças ao fluxo benéfico da corrente fria de Benguela, a sul, e da corrente quente, a Norte[3]).
Por outro lado, dado que o desenvolvimento do sector constitui uma das prioridades do Executivo, pelo facto de a maior parte da população dedicar- se a essas actividades representa outra atracção para o desenvolvimento de tais actividades.
Não obstante o preponderante papel que o sector primário desempenha na economia, a verdade é que o mesmo continua a enfrentar significativas dificuldades, que depois se reflectem nos resultados.
A carência de investimento, para execução dos projectos, conexa à necessidade de maquinaria especializada e melhoria dos sistemas de conservação, para transformação e comercialização, têm representado alguns dos entraves à dinamização do sector primário.
A esse respeito, urge recapitular que a maior parte dos intervenientes nesse sector são pessoas individuais (camponeses, pescadores), alguns com rendimento substancialmente baixo ou pequenas e médias empresas (adiante “PME´s”), que pretendem entrar no mercado e/ou dinamizar as suas actividades.
2. A Lei das Garantias Mobiliárias como veículo de dinamização do financiamento
Nesse sector, as pessoas singulares, bem como as PME´s desempenham um papel fundamental no crescimento e no desenvolvimento de qualquer economia, na medida em que contribuem significativamente para a elevação dos níveis económicos e sociais, mormente, na contribuição para o Produto Interno Bruto (PIB), na criação de empregos, bem como na promoção da auto sustentação e possível exportação de produtos. No entanto, os canais habitualmente utilizados para obtenção de financiamento apresentam condições demasiado onerosas para o desenvolvimento das actividades e viabilidade dos projectos[4].
Tendo em atenção essa realidade, o Executivo tem tentado promover várias iniciativas com vista a reduzir o grau de dificuldades, com particular enfoque para a criação de fontes de financiamento, permitindo um tratamento mais adequado das diversas realidades socieeconómicas do país.
Uma das opções criadas para fazer face às exigências do actual contexto económico e social foi o estabelecimento do regime jurídico aplicável a utilização de bens móveis como Garantia do cumprimento de obrigações, mediante aprovação da Lei n.º 11/21, de 22 de Abril.
Com efeito, as garantias desempenham um papel preponderante no acesso ao crédito, sendo muitas vezes uma condição para a contratação de financiamento, uma vez que os credores pretendem ter certeza de que seu capital será restituído e os respectivos juros remuneratórios pagos nas condições e prazos convencionados.
A lei aplica- se a todas as garantias Mobiliárias concedidas ao credor, que se destinam a assegurar o cumprimento de uma obrigação, independentemente da forma de que se reveste o acto, da natureza da garantia, ou do facto de a Garantia ter sido constituída com a entrega do bem.
Aplica- se ainda às cessões convencionais definitivas de créditos[5], incluindo no que respeita à constituição, publicidade, ordem de prioridade e à locação financeira.
Garantia Mobiliária, para efeitos do presente artigo, é a garantia constituída sobre bens móveis corpóreos e incorpóreos, abrangendo o penhor, hipoteca mobiliária, cessão de créditos em garantia, alienação fiduciária em garantia, venda com reserva de propriedade e quaisquer outros negócios jurídicos cuja função seja a constituição de uma garantia sobre um bem móvel.
A lei, cuja análise e enquadramento nos ocupam, altera de forma muito significativa o regime aplicável aos direitos reais sobre bens móveis constante do Código Civil, pelo que urge a necessidade de se discorrer sobre as principais características:
2.1 Da constituição da Garantia
As garantias podem ser criadas por contrato, decisão judicial ou disposição legal, sendo estabelecido que os contratos são válidos e eficazes entre as partes desde que constem de documentos assinados pelas partes.
As garantias mobiliárias podem constituir-se sobre um ou vários bens móveis, determinados ou determináveis, presentes ou futuros (bens ainda não em poder do garante ou a que este tem direito, ao tempo da emissão da declaração negocial), corpóreos ou incorpóreos, fungíveis ou infungíveis, desde que alienáveis a título oneroso no momento da constituição da garantia. No caso dos bens futuros, têm efeito a partir da data em que o garante adquire os reais direitos sobre o bem.
Para o contrato, a lei definiu requisitos mínimos para a sua elaboração[6] e, nas situações em que o garante e o devedor forem pessoas distintas, a garantia só se torna válida desde que o garante subscreva o contrato de constituição da garantia ou realize a entrega do bem[7].
A garantia também poderá ser constituída verbalmente, desde que acompanhada da entrega do bem.
2.2 Efeitos da Garantia:
A garantia produz efeitos entre as partes desde a sua constituição[8]. Como já se disse, nos casos em que o garante e o devedor forem pessoas distintas, a garantia só se torna válida desde que o garante subscreva o contrato de constituição da garantia ou realize a entrega do bem.
Perante terceiros, a garantia apenas produz efeitos verificados os pressupostos seguintes:
- Na data da sua disponibilização para consulta no site da Central de Registo de Garantias Mobiliárias;
- Pela entrega do bem corpóreo ou do documento que confira a disponibilidade sobre o bem ao credor ou a terceiro;
- Com a celebração de um contrato de controlo[9], quando a garantia tiver por objecto uma conta bancária ou activos financeiros.
A prioridade das garantias convencionais, judiciais e legais é determinada pela data em que cada uma se tornou oponível a terceiros. A garantia pode abranger uma ou mais obrigações de qualquer espécie, presentes ou futuras, determináveis ou determinadas, condicionais ou incondicionais, fixas ou variáveis. Se o montante do crédito garantido for indeterminado ou variável, o contrato deve estabelecer o valor máximo garantido.
Já nas situações em que o contrato é celebrado entre o terceiro garante e o credor, a garantia só se torna válida mediante consentimento expresso do devedor.
Portanto, para que a mesma seja oponível a terceiros, deve ser registada na Central de Registo de Garantias Mobiliarias (CRGM), ou no caso de quotas e activos bancários ou activos financeiros, desde que constem do contrato de controlo.
As garantias sobre veículos, aeronaves, navios e embarcações, as garantias de aquisição (constituídas sobre bens financiados pelo credor), as garantias ou cessões de crédito não representadas por instrumentos negociáveis, inclusive quando resultantes da venda ou da locação de bens imóveis, apenas são oponíveis perante terceiros se registados.
Os recursos minerais e petrolíferos por extrair podem ser onerados pelo titular do direito, apenas para efeitos de financiamento da referida exploração ou extracção.
2.3 Registo da Garantia
O Decreto Presidencial n.º 114/21, de 29 de Abril, que entrou em vigor no mesmo dia, criou a Central de Registo de Garantias Mobiliárias (“CRGM”), que é um serviço público electrónico que centraliza, para efeito de publicidade, toda a informação do registo de garantias constituídas sobre bens móveis, estabelecendo também o procedimento para o registo, modificação e consulta.
Tem como objectivo o fortalecimento do sistema financeito e a diversificação dos activos detidos, bem como a redução da concentração das operações do sistema financeiro.
Por força deste diploma, o registo de uma garantia e as respectivas cessões é realizado pelo credor, pelo cessionário de um crédito ou pelo locador, consoante o caso, junto do serviço competente para o registo de propriedade do bem sobre o qual incida a garantia e a CRGM dissemina esta informação. Tratando-se de bens não sujeitos a registo de propriedade, o registo é efectuado na plataforma informática gerida pela CRGM. A plataforma foi implementada pelo Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, funciona junto da Direcção Nacional de Identificação, Registo e Notariado.
O cadastro na plataforma (crgm.gov.ao) passa pela criação de uma conta, aonde deverão ser colocados todos os dados da pessoa, seja singular ou colectiva. Depois de criada a conta, podem ser feitos os registos pretendidos. A plataforma permite a pesquisa de registos, independentemente de ter ou não conta, ou seja, qualquer pessoa pode pesquisar registos de garantias mobiliárias de terceiros.
2.4 Transmissão da Garantia
A garantia transmite-se com o crédito garantido, a menos que seja acordado de outra forma[10]. O comprador ou locatário que adquirir um bem onerado por uma garantia devidamente publicada, adquiri-o com o respectivo ónus, excepto:
- Nos casos em que um bem corpóreo é adquirido ou locado no curso da administração ordinária do garante;
- Quando se tratar de dinheiro ou transferência de fundos em conta bancária e o receptor desconhecer a existência da garantia;
- Se o bem for de consumo corpóreo de reduzido valor.
Quanto às alíneas a) e c), exceptuam-se do parágrafo anterior os casos em que o adquirente tiver conhecimento efectivo da garantia e agir no intuito de fraudar os direitos do devedor.
2.5 Execução da Garantia
Em caso de incumprimento, a execução pode ser judicial ou extrajudicial, sendo permitida a apropriação do bem pelo credor e a venda directa, desde que expressamente previsto no contrato e verificadas certas condições[11].
A execução extrajudicial ocorre sempre que o devedor incumpra as suas obrigações, após notificação sobre realização da diligência, no prazo de cinco dias úteis, caso o contrato não preveja outro. Este tipo de execução compreende a apropriação do bem dado em garantia, desde que expressamente previsto no contrato de garantia.
Dessa forma, o credor tem o direito de se apropriar, fazendo seu o objecto da garantia, sem necessidade de recorrer ao tribunal ou a qualquer outra autoridade nos casos em que o contrato assim preveja.
Caso o devedor não proceda à entrega do bem, pode o credor recorrer à força pública, sem necessidade de intervenção do tribunal.
Se as opções acima referidas se revelarem infrotíferas, o credor deverá recorrer à execução judicial.
3. A Lei das Garantias Mobiliárias como veículo de dinamização do financiamento ao sector real/ primário da economia?
A Lei n.º 11/21 representa uma lufada de ar fresco no que diz respeito às possibilidades de aquisição de financiamento. Confere uma maior segurança e fluidez aos financiamentos, por permitir que bens que anteriormente não eram passíveis de registo e, como tal, não podiam ser usados para assegurar o bom cumprimento das obrigações creditícias, agora, sendo susceptíveis de registo, passam a garantir o bom cumprimento das obrigações do devedor face ao credor.
Para o sector real/ primário da economia, atentando à realidade social e as dificuldades no acesso ao financiamento bancário, essa Lei representa a possibilidade de obter crédito em tempo útil e sem necessidade de oferecer garantias que onerem, de forma insustentável, a empresa/ produtor.
Com efeito, a hipótese de serem dadas como garantia máquinas utilizadas na própria actividade, bens móveis do devedor ou de terceiro (mediante autorização) e até mesmo o produto da actividade, enquanto bem futuro (seja o fruto da colheita, pesca, entre outros), permite aos intervenientes do sector real avalizar o seu investimento de forma mais sustentável.
Para além do que vai exposto, a liberdade na negociação das condições da concessão do crédito permite uma melhor adaptação a cada caso e resposta às necessidades do devedor, bem como às exigências do credor.
Não subsistem dúvidas de que a Lei, no plano teorico, representa um veículo de dinamização e captura de investimento.
Não obstante as vantagens para os credores e devedores, decorrentes deste novo regime, prevemos que se levantem algumas dificuldades práticas.
Por um lado, poderão surgir dificuldades para tornar totalmente operacional a Central de Registo de Garantias Mobiliárias, nomeadamente, na transição dos dados já existentes e registados nas demais Instituições Públicas. As dificuldades sentidas na comunicação entre as Instituições Públicas gerará, indubitavelmente, atrasos na operacionalização das garantias previstas na Lei.
Por outro lado, a experiência limitada para aceder a uma plataforma exclusivamente electrónica (CRGM) e o uso de instrumentos sofisticados, como assinaturas electrónicas, poderão constituir outro constrangimento prático. A esse respeito, vale lembrar que o sector real/ primário é desenvolvido, não excepcionalmente, por indivíduos sedeados e residentes em províncias que não a capital, com acesso e conhecimento informático limitado.
Ultrapassados esses constrangimentos, e disseminado o conteúdo da presente Lei, crê- se que existam condições para que o sector real/ primário seja impulsionado, rumando ao desenvolvimento, sustentabilidade e eventual exportação.
Aline Simões
[1] Considerando que existem processos de privatização em curso, bem como a necessidade de se inscrever no PROPRIV novos activos e participações do Estado, no âmbito da reforma do Sector Empresarial do Estado, houve a necessidade de ser actualizado o programa das Privatizações.
[2] Por sua vez, o sector Secundário compreende o ramo da actividade vocacionada à transformação resultante da produção do sector primário pela industrialização e o sector Terciário é o sector que se dedica à prestação de serviços não tangíveis, nomeadamente, banca, seguros e resseguros, turismo, restauração, entre outros.
[3] Apesar da captura efectuada com tecnologia moderna, por parte que barcos pesqueiros estrangeiros, a pesca dominante continua a ser a artesanal.
[4] A título de exemplo, recorrer a crédito bancário continua a implicar, entre outras obrigações, a de pagamento de juros remuneratórios bastantes altos, o que não se compadece com a actividade desenolvida por um camponês do interior, responsável pelo sustento de uma família de mais de 6 elementos.
[5]É o acto pelo qual o titular de direitos patrimoniais transfere tais direitos, total ou parcialmente, em geral, para outrem. Isso significa que, no que tange ao que foi cedido, o anterior titular não poderá mais tomar decisões e/ ou dispor, passando para a esfera jurídica do cedido.
[6] Artigo 7.º da Lei n.º 11/21, de 22 de Abril (RJGM)
[7] Artigo 4.º da Lei n.º 11/21, de 22 de Abril (RJGM)
[8] Artigo 32.º do RJGM
[9] Acordo mediante o qual o devedor passa para o credor os seus poderes de controlo sobre os seus activos financeiros, o qual deverá ser dado a conhecer às instituições financeiras competentes.
[10] Art. 49.º RJGM.
[11] Art. 62.º do RJGM.